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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Tempo sem nome

Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos olhos verdes, cantando madrigais para a moça de cabelo cor-de-abóbora, Chico Buarque de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum. Elas torcem o nariz para mais essa audácia do trovador. O casal cinza e cor-de-abóbora segue seu caminho e tomara que ele continue cantando "eu sou tão feliz com ela" sem encontrar resposta ao "que será que dá dentro da gente que não devia".
Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida.
... Não fora  o entorno e seus espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo "um senhor tão bonito quanto cara do meu filho", segundo Caetano, quem, por si mesmo, se perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre fomos.
A vida sobrepõe uma série de experiências que não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se reconhecem. E, se é verdade, que o envelhercer é um fato e uma foto, é também verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em um homem ou uma mulher de meia-idade, fazendo projetos  que mal cabem em uma vida inteira.
Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias e botoxes - obras na casa demolida - a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma vendedora de cosméticos a mulher mais rica do mundo, se explica justamente pela depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.
Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmentida por uma saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é mais quando era antes, os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do trabalho e da libido, estão, ambos, perdendo autoridade... Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.
"Meu tempo é curto e o tempo dela sobra", lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva. Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas memórias escritas por Marguerite Yourcener.
Todos os corpos são traidores. Essa traição, incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição."

Esta belíssima crônica, de Rosiska Darcy de Oliveira, foi publicada no jornal O Globo de 21 de janeiro. É um reflexo mais-que-perfeito da mais pura e cristalina verdade: envelhecer é uma merda, mas pode ser menos pior se se tiver a lucidez necessária para não se deixar cair no ridículo de se querer jovem "forever". Meu tempo é hoje!!!!!

Um comentário:

  1. Oi, Sonia! Tudo bem? O texto é excelente! Ficou incompleto o final que você enviou. Passando por aqui, aproveitei para copiar o final e completar o enviado.
    Quando o corpo se torna objeto de consumo, e o tempo se incumbe de torná-lo sem o vigor e a graça da juventude, resta apenas a angústia e o sofrimento, porque nada mais se é, ou se tem, senão ele. Apaixonar-se pelo que é perecível é a grande armadilha da vida, e a fonte de toda a dor. Foi uma alegria encontrá-la. abraços. mario

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